Goodbye Joe
Eu acho que todo mundo que se conhece como Dentista já ouviu a frase “A Odontologia é uma profissão que exige dos que a ela se dedicam, o senso estético de um artista, a destreza manual de um cirurgião, os conhecimentos científicos de um médico e a paciência de um monge”. Segundo fontes esta frase foi proferida pelo Papa Pio XII em 1946 quando discursou para Cirurgiões Dentistas na Itália. Mais do que o senso estético de um artista, destreza de um cirurgião, ciência de um médico e a paciência de um monge eu adicionaria alguma coisa mais relacionada com a habilidade de se relacionar emocionalmente com as pessoas. Quaisquer que sejam as emoções um Dentista deve ter a habilidade de se conectar com os pacientes. Algumas vezes esta conexão não acontece de imediato e acaba evoluindo com o passar do tempo. Outras vezes ainda acontece em um estalo. Em um simples movimento de sobrancelha reconhecendo a presença da pessoa. Outras vezes isso nunca acontece.
O ano de dois mil e vinte ficou marcado na história como o ano da pandemia. Centenas de milhares de pessoas se viram presas em suas casas. Não vou sugerir se lockdown é uma coisa boa ou ruim, porque até hoje eu não consigo entender as razões e motivos tanto para lockdown ou não. O que é essencial ou não. O que eu sei é que eu perdi algumas pessoas que eu tinha um apreço muito grande e, por mais que seja um contrassenso, eu acabei perdendo um paciente que me era muito querido.
Vou chamá-lo de Joe, para preservar a sua identidade.
Quando nos conhecemos, Joe já era um pouco avançado em idade. Era um senhor perto dos 80 anos de idade, alto, sorriso fácil, com um aperto de mão forte e um grande bom humor. Joe vinha periodicamente às consultas para tratamento, limpeza e profilaxia e por vezes ele aparecia para um procedimento de emergência geralmente relacionado à fratura de um dente por não se conter em comer nozes e pistache. Toda vez que ele chegava fazia festa quando me via. Perguntava de família e sempre tinha uma piada para contar.
Por alguns anos ele esteve à frente da liga amadora de baseball da região. Amava o Red Sox e tinha uma paixão avassaladora pelo esporte. Por dois anos consecutivos ele me trouxe uma camiseta do seu time local e em um destes anos ele não se conteve em dizer que seu time fora campeão invicto da competição. Certamente um campeonato muito disputado, pois desta liga amadora muitos jogadores profissionais emergiram para a liga profissional. Joe sabia tudo sobre o jogo e sempre contava das suas jogadas quando era jovem.
O tempo passou e infelizmente a saúde dele acabou não acompanhando a sua alegria de viver. Mais e mais ele dependia da sua esposa que o acompanhava em todas as suas consultas. Sendo a sua segunda esposa, casado depois que seus filhos já estavam crescidos, eles não tiveram filhos, mas sua esposa sempre os tratou como se fossem seus. Era visível o amor e dedicação de um para com o outro. Sua esposa é uma mulher muito ativa, também de sorriso fácil e temperamento forte. Depois de algum tempo vim saber que eles tinham ascendência grega, o que acabou corroborando a paixão pelas risadas e uma boa conversa.
Nancy – como vou chamá-la – também se tornou minha paciente e periodicamente também chegava para as consultas sempre de bom humor e com uma história engraçada para contar. A coisa mais legal que vi foi uma discussão que ela teve em grego com a sua mãe. Pode acreditar que por mais que ela jurasse não estar brava, uma discussão acalorada em grego te faz pensar no que a gente se livrou por nossas mães não virem da Grécia.
Mais e mais a saúde do Joe continuava a declinar e eu me lembro da última vez que nos encontramos no consultório. Ele estava bem debilitado, usando um andador e com sinais evidentes de demência. Por duas vezes ele perguntou o meu nome e sua esposa sempre presente lembrava-o quem eu era e o que ele estava fazendo ali.
Os dias passaram e durante quase nos últimos dias do período que fiquei em casa durante a quarentena, eu li uma nota no jornal dizendo que o Joe tinha falecido. Eu fiquei muito triste e não pude deixar de pensar em Nancy. Sabia que estavam casados há mais de 35 anos e sabia do amor e dedicação dela por ele. Mais do que o seu marido que partira, seu amigo e companheiro iria deixar uma lacuna muito grande em sua vida.
Esta semana Nancy voltou ao consultório. Emergência. Dor, sem inchaço e a necessidade de uma extração que acabei indicando para um colega. A consulta foi simples, mas o que me marcou foi a minha falta de coragem para mencionar o falecimento do Joe. Eu sabia que o assunto viria e acabou ocorrendo no meio da consulta quando ela me perguntou se eu soube do ocorrido. Respondi com a cabeça e disse que sentia muito pelo falecimento dele. Os olhos dela se encheram de lágrimas e ela disse que ele gostava muito de mim. Ela disse que eu tinha sido o único dentista que ele dizia sentir prazer de ir consultar e que ela o chamava de maluco quando ele acordava de manhã, dizendo todo empolgado que iria ao Dentista. Quem acorda de manhã, feliz da vida por que vai ao Dentista?
Ao final da consulta nós nos abraçamos e foi a primeira vez que eu chorei junto com um paciente. Chorei de emoção por ter sido tão querido por alguém que eu via esporadicamente. Chorei com a Nancy, por ver tanto amor ainda presente na saudade que ela sente da ausência do seu marido. Chorei sozinho ao ouvi-la sussurrando no meu ouvido que ela sabia que aquela consulta seria muito difícil para ela.
Esse é o tipo da coisa que não há dinheiro que pague. Ao contrário da filosofia de trabalho que eu aprendi que existe nos Estados Unidos, onde o Dentista vê o consultório como uma empresa, eu não sei se eu conseguiria manter viável um consultório para chamar de meu. Eu não consigo ver as pessoas que entram no consultório como fontes de renda. O meu trabalho me dá a oportunidade de lidar com vidas e mesmo que eu não me torne um milionário eu vou ter a certeza de que eu pude ajudar as pessoas a terem uma vida melhor, porque elas mesmas me fazem uma pessoa melhor.
Um abraço e sucesso sempre!