50 Dias
É um sentimento estranho. Sinceramente eu não achava que minha saída do trabalho fosse me afetar da maneira como está acontecendo. Sempre tive por hábito chegar bem cedo para trabalhar, mas não que fosse necessário. Eu sempre fui o primeiro a chegar, uma vez que ganhei a confiança da corporação em me oferecer a chave da porta de entrada. Eu me lembro quando ainda no antigo prédio em Hyannis na Elm Ave, uma das enfermeiras – que chegava ainda mais cedo que eu – sempre abria a porta para eu poder entrar. Este hábito bem se perpetuando durante os anos para que eu possa iniciar meu dia sabendo o que eu vou encontrar em termos de procedimentos a serem feitos, pacientes a serem vistos e uma checagem prévia no que foi feito anteriormente, bem como o que foi conversado em consultas passadas.
Desde que eu recebi a notícia de que em julho eu irei iniciar meus dias dentro da Universidade de Boston eu venho fazendo uma contagem regressiva para o início das aulas. Quem me segue pelo Instagram sabe que até pouco tempo eu estava fazendo uma contagem regressiva; coisa que eu parei de fazer mais por preguiça mesmo e achar que ninguém quer saber tanto sobre a minha vida assim, mas no trabalho eu venho fazendo uma contagem regressiva colocando no quadro branco de informações quanto tempo eu ainda tenho ali. Fica em um lugar discreto onde poucos ou quase ninguém sabe. Quem sabe não fala nada, quem não sabe nem pensa em olhar. Até ontem a contagem estava em 49 dias.
Agora, pouco mais de sete semanas parece um longo tempo para terminar casos clínicos iniciados recentemente. Está sendo difícil falar para meus antigos pacientes que eu estou deixando o trabalho. Eu já tive paciente que se emocionou quando dei a notícia e outros que ficaram entusiasmados por mim com a minha saída, mas tristes por não nos encontrarmos mais. Isso realmente tem uma valor muito maior do que qualquer coisa palpável, porque dá a sensação de que o trabalho feito ali foi bem-feito e que de alguma forma eu pude fazer a diferença na vida deles. Várias vezes eu tive pacientes dizendo para mim que não sentiram nada durante a injeção do anestésico, seja pela técnica usada ou pela intempestividade do último dentista que causou algum trauma naquele paciente, mas o que marca de verdade é saber que a gente foi capaz de aumentar a expectativa do paciente para sua próxima consulta e se o próximo Dentista fizer ele(a) sentir dor durante o procedimento anestésico eles irão imediatamente se lembrar daquele Dentista que fez a mesma coisa de forma indolor.
São pequenas coisas que são necessárias para marcar para sempre a vida dos pacientes. Coisas como olhar diretamente nos olhos quando conversar com eles, fazer-se bem compreendido no momento de explicar algum procedimento, ser assertivo na hora de dar um diagnóstico e transmitir segurança no momento de dor e fragilidade quando muitas vezes eles chegam até você. Muitas vezes em casos de extrações eu opto por fazer odontosecção porque eu sei que isso irá trazer menos trauma, movimentos bruscos e pouca força no momento da remoção do dente. Uma simples explicação para o paciente pouco antes de iniciar o processo irá colocar uma certeza dentro deles de que o uso de um instrumento rotatório irá facilitar a remoção daquele dente com raízes divergentes, afuniladas ou com grande chance de fratura. Outra coisa importantíssima a sempre se lembrar é que tudo o que se fala antes de qualquer procedimento é explicação do que irá acontecer; do que pode ou não ocorrer, coisas como a fratura de raízes, tábuas ósseas, perfuração sinusal, quebra de instrumentos endodônticos ou a necessidade de suturas. Tudo o que se tem que explicar depois do que aconteceu é desculpa. Se o paciente já tinha a informação do que poderia acontecer, quando acontece ele já sabia. Isso vale muito para tudo ali dentro, por isso que é sempre muito importante ter tempo suficiente para conversar com o paciente para explicar os riscos dos procedimentos realizados para que depois você não precise arrumar desculpas dos motivos por que aconteceram.
Claro que isso tudo vem com o tempo e nem sempre a gente consegue prever o que vai acontecer. Essa semana mesmo eu tive o caso de uma paciente que chegou para fazer a extração de um pré-molar superior direito com fratura da coroa em nível gengival, com cárie no remanescente radicular, muito próximo da base do seio maxilar com uma possibilidade de fratura no terço apical. Antes de iniciar o procedimento eu mostrei a imagem radiográfica para ela e falei que caso a fratura acontecesse eu não iria atrás do remanescente radicular. Eu a encaminharia para um cirurgião buco maxilo facial para fazer a remoção daquele terço apical. No final a raiz remanescente saiu inteira, sem qualquer fratura ou qualquer outra complicação.
Eu sei que vou sentir muita falta deste contato direto que tenho com os pacientes e, mais ainda com a equipe com quem eu trabalho. São grandes pessoas e grande profissionais que se dedicam muito a fazer este atendimento diferenciado para a comunidade local. Das meninas da recepção aos Dental Assistants e colegas Dentistas, todos eles que sempre fizeram parte da minha vida profissional aqui nos EUA, estes próximos 48 dias para mim serão os mais difíceis. Dizer adeus não será nada fácil.
Um abraço e sucesso sempre!