O Garoto da Bolha
No inicio ou meio dos anos 80 o Fantástico da Rede Globo tinha um repórter que me metia medo. Suas reportagens aconteciam geralmente ao final do programa, era sempre cercado de uma musica bem estranha e com aquele clima no ar de um filme de mistério e terror, mas que ao mesmo tempo não dava muito na cara. Hélio Costa tinha um jeito muito peculiar de apresentar suas reportagens. Na grande maioria das vezes eram reportagens internacionais sobre assuntos dos mais diversos. De discos voadores a possessões demoníacas. De mistérios envolvendo o sobrenatural a questões sociais envolvendo um assunto qualquer.
Um desses assuntos quaisquer foi a história de um menino que por conta de uma doença não podia sair de dentro de uma bolha plástica que o protegia do contato com as outras pessoas. Seu sistema imune estava muito debilitado e a indicação médica para protege-lo era ser mantido constantemente dentro desta bolha plástica. Tudo o que era trazido para ele deveria passar por um processo de desinfecção, esterilização ou qualquer outro método que impedisse o garoto de se contaminar com o que vinha de fora.
Ainda que pudesse parecer um exagero, viver dentro de uma bolha não significa necessariamente ser cercado por um material plástico vinte quatro horas por dia, tendo tudo o que entra em contato com você sendo previamente limpo ou esterilizado. Muita gente cresce e vive fora de bolhas plásticas e são imersos dentro de uma bolha social onde tudo o que chega a ter contato com ele é previamente avaliado por terceiros, para que o mundo não pareça ser tão ruim quanto ele realmente é. Esse tipo de bolha pode ser mais perigosa do que a plástica que impede micro-organismos a entrar em contato com um corpo debilitado. Quando a pessoa vive “livre” e tem tudo previamente “limpo” e “preparado” antes de ser consumido as chances de se causar uma morte prematura pode ser muito grande. Tudo bem... morte talvez seja um termo muito pesado, mas as chances de uma decepção maior com a vida e o que o cerca é muito maior.
O meu sonho de consumo em termos de Faculdade de Odontologia era a UNESP em São José dos Campos, SP. Porque a UNESP? Porque São José dos Campos? Primeiro porque era uma faculdade Estadual. Segundo porque eu não poderia morar em casa, sem precisar me mudar. Quando eu já tinha decidido a fazer Odontologia eu almejei a Odontologia na UNESP como a minha única opção. Acabei fazendo vestibular em duas outras só para tirar a minha mãe do meu pé. 5 anos de colegial (conto essa história depois), 1 de cursinho eu sabia que tinha chance e conseguir o que eu queria. Fiquei por 4 candidatos na segunda chamada e acabei cursando Odontologia em outra Faculdade.
Mas isso não foi ruim. Meus pais adoraram por que eu poderia finalmente sair de casa. Ainda que eu estivesse cursando faculdade em uma cidade a 40 minutos de casa meus pais colocaram tudo dentro do carro e me mandaram para morar fora. Foi uma coisa muito chocante, porque naquele momento eu senti que aquela bolha onde eu tinha vivido toda a minha vida de uma hora para outra tinha estourado, e eu estava lá... fora da bolha. Mas nada como viver a vida para aprender a viver. E nada como aprender a viver, do que aprendendo a viver fazendo merda. Chega um determinado momento da vida que a gente deixa de aprender com conselhos de pai e mãe – que nunca ninguém leva em conta – quando a vida começa a nos ensinar. Um exemplo:
Confiança.
Aprendemos com nossos pais que nós podemos e devemos confiar neles. Podemos confiar neles cegamente. Tudo o que eles nos falam é verdade e certo. Se a gente seguir o que eles nos falam nada vai dar errado. Até então estava tudo certo. Meu pai falou que se eu gastasse menos do que eu ganho eu vou ter dinheiro sobrando. Minha mãe disse para que eu não ficasse preso a somente uma opção de Faculdade. Meu pai ensinou que não se deve prometer nada que não se tenha a intenção de cumprir. Você não precisa prometer nada, mas se prometer você deve cumprir. Minha mãe me ensinou que todo mundo é igual e não devemos fazer acepção de ninguém. Ninguém é melhor que ninguém.
Eu fui para o meu primeiro dia da faculdade com tudo isso na cabeça e certo que o que me dissessem seria algo a se realmente crer. Porque não? Todo mundo tão amistoso e parecia que todos estavam tão felizes em nos ver. Mas era dia de trote. Era o primeiro dia de aula. O primeiro dia do primeiro ano.
Eu acho que até então eu não tinha ouvido tanto palavrão. Eu sabia alguns apesar de nunca tê-los usado com frequência, mas outros eu ficava imaginando de onde tinham saído. De repente eu e mais três recém ingressos fomos cercados por uns 10 alunos que depois fiquei sabendo que eram do segundo ano. O ano anterior eram eles que estavam ali no primeiro dia do primeiro ano. Eles disseram que parte do trote era que a gente deveria colocar a cueca por cima da calça. Fazia muito sentido porque as meninas todas estavam com o sutiã por fora da camisa. Se elas podiam, porque não a gente? O problema é que a cueca não sai por cima da calça. O sutiã sai pela manga da camisa, a cueca não sai pela boca da calça. Por mais profundo que seja o rego do cidadão, não da pra tirar a cueca por baixo da calça sem que a calça saia primeiro.
Os 10 segundo anistas garantiram – GARANTIRAM – que eles ficariam com o circulo fechado para que a gente pudesse fazer a troca. No meio da rua. Não tinha por que não acreditar ou não fazer. Não acreditar por que calouro (primeiro anista) por definição é burro e os 10 ali nos cercando eram futuros Dentistas que estavam ali para zelar pela nossa integridade física e moral.
Mas foi a cueca encostar no chão - ao lado da calça recém removida - e a lua cheia aparecer que os 10 de uma vez abriram a roda. Outra bolha que se estourou. Confiança. Confiança nas pessoas deveria ser conquistada e nunca um dado adquirido. Eu nunca tinha desfilado em bloco de carnaval e por alguns segundos eu me senti na Marques de Sapucaí rebolando para escolher quem voltava primeiro; se a cueca e depois a calça ou a calça e depois a cueca por cima da calça.
Inocência nasce com a gente e a gente não perde sem querer. É justamente o contrário. Inocência é uma coisa que a gente faz questão de perder tipo aquela prova de Física que a gente tem que levar para os pais assinarem. A bolha que a gente cresce dentro de casa serve para nos ensinar os limites para até onde a gente pode chegar, mas isso vale até determinado momento da vida, porque conforme a gente vai adquirindo experiência temos condições de expandir lentamente os nossos limites, saber em quem confiar, o que expor para terceiros e o que manter segredo.
Um abraço e sucesso sempre!