Mão Amiga
Nos meus primeiros meses trabalhando como Dentista nos EUA, eu tive a chance de viver duas experiências muito marcantes na minha vida pessoal. Coincidentemente essas duas experiências acabaram ocorrendo no mesmo dia, em questão de minutos, entre me sentir o pior ser do mundo e logo sem seguida ser amparado de maneira quase sobrenatural. Mas quero deixar muito bem claro aqui que esse sentimento de “pior ser do mundo” estava diretamente associado à minha solidão e insegurança até então. Eu não tinha nem um ano vivendo nos Estados Unidos e eu ainda estava passando pela chamada “calibração cultural”, necessitando aprender a ferro e fogo os mistérios da relação interpessoal na cultura norte-americana.
O nosso grupo de Dentistas da época era formado por quatro Dentistas. Três clínicos gerais e um Cirurgião Buco Maxilo Facial já nos seus anos finais de profissão. Trabalhara por mais de 45 anos em consultório particular e como Professor em um Hospital no Estado de Connecticut. Seus dias áureos dentro do mundo da Cirurgia dera-se entre os anos 70 e 80 e sua atividade ali era reconhecida como um final de carreira majestoso, fazendo o atendimento clínico em pacientes que não poderiam ser atendidos em consultório particular.
Sem dúvida uma alma diferente. Era atencioso, gostava de uma boa conversa, uma boa risada e de contar histórias do tempo em que chefiava o centro cirúrgico do Hospital e as dificuldades que ele passava tentando sempre manter o seu barco funcionando. Todos que o conheciam sentiam a mesma coisa sobre sua pessoa. Mas como todos nós, ele também tinha um lado um pouco menos gracioso e, infelizmente, eu tive a oportunidade de um dia conhecer.
Essa insegurança de que falei anteriormente apareceu de maneira mais acentuada na primeira vez que eu precisei conversar com um paciente pelo telefone. A mulher estava nervosa e não muito satisfeita com a minha decisão profissional de não prescrever o narcótico que ela queria. Primeiramente porque eu sabia que narcótico não seria necessário no caso específico que ela apresentara clinicamente e depois porque eu não sabia do problema que era prescrever este tipo de medicamento. Até então, eu não tinha o poder de prescrever medicamentos. Tudo o que eu precisava fazer era chegar para um dos Dentistas americanos que trabalhavam com a gente, explicar o caso, os motivos e as drogas necessárias que ele(a) assinariam a prescrição. Isso tudo mudou posteriormente e os Limited Licenseé acabaram obtendo este poder.
Mas voltando ao caso, aquela mulher estava muito alterada no telefone e eu totalmente inseguro de como falar com ela ao telefone, acabei passando o caso para o meu Diretor Clínico que acabou contornando a situação e me livrando daquela enrascada. Tudo bem. Lição aprendida. Posteriormente eu acabei aprendendo como falar inglês pelo telefone e esse medo que eu tinha foi sendo deixado para trás. Na verdade, não era medo de falar inglês ao telefone. Para mim era muito mais fácil manter uma conversa em inglês pessoalmente porque, por mais estranho que seja, ver a pessoa articulando as palavras me ajudava a entender melhor o que estava sendo dito e pelo telefone tudo ficava mais difícil porque eu não tinha ainda o ouvido treinado de maneira que eu pudesse compreender tudo o que estava sendo dito. A mulher acabou recebendo o remédio que ela queria e ainda demorou um pouco para eu me sentir mais confortável falando ao telefone.
Certa vez, eu precisei ligar para uma farmácia para conversar com o farmacêutico sobre um determinado medicamento. Eu não tinha idéia de como fazê-lo e fui conversar com nosso Cirurgião sobre como iniciar a conversar e o que perguntar ao farmacêutico. Ele me explicou tudo, mas somente depois ter mantido esta conversa foi que eu percebi que esta conversar seria desnecessária já que somente o envio de um documento por fax seria o suficiente para o que era necessário. Foi então que tudo começou.
Nossa Diretora Administrativa na época era uma Dental Assistant com mais de 35 anos de experiência na área. Como tal, ela não dispunha de conhecimento técnico sobre o assunto “farmacologia”, mas sabia de cabeça qual o número de telefone do fax de onde estávamos localizados. Naquele exato momento ela estava passando pela clínica e eu me aproximei dela e perguntei o número de telefone do fax e anotei em um pedaço de papel. Da sala onde ele estava, o Cirurgião me viu conversando com ela. Eu peguei o número, fiz o envio do documento e estava voltando feliz e satisfeito comigo mesmo por ter aprendido mais uma coisa nova.
Ao chegar na clinica novamente o Cirurgião me chamou na sala, fechou a porta e me deu uma bronca sem medida e completamente desnecessária sobre a minha incapacidade de me ater aos seus comentários e de como eu tivera coragem de ir perguntar a uma Dental Assistant a mesma coisa que eu tinha perguntado para ele. Quem ela era para saber mais que ele e quem eu achava que eu era ter ido perguntar para outra pessoa o que ele tinha acabado de me explicar.
A imagem que ficou na minha cabeça foi mais ou menos como ser ameaçado por Vito Corleone. Em momento nenhum ele gritou ou elevou o tom de voz, mas só a imagem dele sentado com o dedo em riste e com o poder de literalmente me demitir naquele exato momento acabou com qualquer expectativa futura para mim. Ainda que eu quisesse explicar o que tinha acontecido, ele estava certo e seguro que eu o tinha desrespeitado e, ainda mais, fui me aconselhar com alguém que ele via como inferior a ele.
Aquilo mexeu muito comigo. Nunca se quer tinha me passado pela cabeça desrespeitá-lo ou mesmo questionar o que ele tinha acabado de me falar. Mas como tudo de errado começa com suposições mal esclarecidas, meu dia e expectativas futuras ali dentro estavam totalmente destruídas. Sai da sua sala mudo e fui procurar colocar a cabeça em ordem na área administrativa da clínica onde eu reclinei e cabeça na parede e comecei a pensar por onde eu reiniciaria a minha vida nos EUA.
Neste meio tempo, uma das Diretoras do centro me viu entrando na área administrativa e viu que eu não estava bem. Eu estava com a cabeça encostada na parede pensando como eu faria para trazer minha esposa para os EUA se eu não tivesse mais aquele trabalho e senti a sua mão nas minhas costas perguntando se eu estava bem. Eu não estava, era mais do que evidente. Comecei a chorar. Sozinho, longe da minha esposa e sem perspectiva do que fazer sem ter aquele trabalho, eu contei o que tinha acontecido. Ela me ouviu. Era o que eu precisava. Mais do que isto ela me abraçou e me deu a certeza de que nada de mal iria acontecer. Ela estendeu sua mão e me assegurou que lidar com pessoas mais velhas e com o ego em determinada posição poderia ser mais difícil e desafiador. Eu agradeci, voltei ao trabalho e ainda hoje estou ali.
Meu relacionamento com este Cirurgião mudou muito depois deste episódio. Eu procurei entender o seu lado, ainda que a suposição que ele tenha feito sobre o que aconteceu longe dos seus olhos e ouvidos não tivesse em nada refletido a realidade. A gente acabou se tornando amigos e eu sempre cultivei uma admiração muito grande por ele, como profissional e como pessoa. Hoje ele não está mais conosco, mas aquela bronca desmerecida acabou me servindo para aprender que fazer suposições nunca leva ninguem a lugar nenhum e que uma mão amiga e um abraço são mais poderosos que qualquer remédio contra a dor na alma.
Um abraço e sucesso sempre!