Opióides
Em 2008 quando comecei a trabalhar no Community Health Center onde estou trabalhando muita coisa nova apareceu para mim. Eu acho que a primeira coisa que me chamou muito a atenção foi a cadeira odontológica sem cuspideira. Além de não ter aquela peça de louça nojenta para ser limpa, a cadeira ainda tinha uma qualidade que, até então, eu não imaginava ser possível. Era ambidestra. Sendo eu canhoto, sempre passei por momentos um pouco constrangedores quando visitava consultórios de colegas para fazer tratamento de canal, levando todo meu material, mas precisando me adaptar em lugares apertados, dividindo espaço com a malfadada cuspideira.
Mas o que me chamou bastante a atenção nos meus primeiros dias e semanas trabalhando nos EUA foi cultura local de se prescrever opióides para pacientes que tivessem extrações dentárias. Opióides... eu mesmo tinha pouquíssimo conhecimento sobre o assunto. Nos anos que exerci a Odontologia no Brasil, extrações cirúrgicas eram administradas com Lisador e dexametasona. Não precisava mais que isso. Uma única vez eu precisei lançar mão de uma mistura de opióides que existia na época no Brasil: Tylex, que era codeína com paracetamol.
Eu digo que esta foi uma das coisas mais difíceis por que passei logo quando comecei a trabalhar aqui nos EUA. Não somente eu estava no meio de um oferecimento completamente indiscriminado de opióides para qualquer caso cirúrgico, eu acabei me vendo atendendo pacientes que estavam sofrendo de dependência química e psicológica deste medicamento.
Logo quando eu comecei eu não tinha a habilidade de prescrever medicamento. Como Limited Licenseé eu não dispunha da documentação necessária para poder prescrever. Esta habilidade acabou chegando depois de alguns anos, ainda assim de maneira bem controversa, porque foi-nos dado uma capacidade e um fardo de responsabilidade que, até então, eu não tinha.
O pior de tudo era ver que os pacientes já sabiam por que estavam lá e se mostravam com muito conhecimento de farmacologia e as interações das drogas entre si e em seus próprios metabolismos. Eles sabiam que eram “alérgicos” ao Ibuprofeno e sabiam que o Paracetamol não tinha nenhum efeito sobre eles. Alguns ainda davam um “migué”. Diziam: “Então doutor... meu último Dentista me deu um remédio da última vez... eu não lembro o nome... começava com “V” alguma coisa...”. “Viagra?” pensava eu... Não! Vicodin. Os fãs do seriado “House, MD” sabem do que se trata. É uma mistura de Hidrocodona e acetaminofen. Outros ainda iam mais longe. “Doutor meu caso de dor só resolve com um remédio específico. Eu não lembro o nome, mas chamava Per... Perc... alguma coisa assim.” Percocet. Para quem não conhece é a mistura de oxicodona e acetaminofen.
Era até interessante alguns casos que eu presenciei. O paciente chegava no consultório jurando dor de dente nível 10. Sempre na sexta feira entre 3:30pm e 4:00pm. Um dente completamente impossível de se restaurar por conta de cárie, periodontite destruindo todo o osso alveolar, mobilidade nível máximo possível, pronto para ser extraído. Após a obtenção do raio-X, a leitura da imagem feita e o diagnóstico e procedimento pronto para começar o paciente falava: “Ah, então, eu não estou preparado para fazer extração hoje. Não tem nada para me dar para eu passar o final de semana sem dor? A semana que vem eu volto para tirar o dente.” Era sempre a mesma história. Toda sexta feira era esperar o final do dia para encher a sala de espera de emergência para o final de semana.
O problema maior era que se eles não conseguissem com a gente, eles sabiam que indo ao Hospital eles invariavelmente conseguiriam por lá. Como não tinha dentistas no Hospital, a forma mais fácil de lidar com dor de dentes era prescrever opióides e antibiótico.
Alguns problemas derivaram desta prescrição indiscriminada de medicamentos opióides. O número de mortes de dependência aumentou assustadoramente. Pacientes morrendo de overdose de heroína acabou levando o país inteiro a uma epidemia de dependência de opióides que foi começar a diminuir somente há alguns anos. Uma vez que a legislação foi alterada e os Hospitais pararam de prescrever opióides de maneira indiscriminada, o número de pacientes procurando por tal remédio despencou assustadoramente. Não somente isto, os Estados começaram a fazer uma verificação periódica sobre os Médicos e Dentistas que prescreveriam este medicamento. Os Estados criaram um banco de dados onde é possível ver os medicamentos controlados dispensados para os pacientes. Fazendo isto o Médico ou Dentista tem condições de acessar este banco de dados e saber precisamente quando foi a última vez que o paciente recebeu medicação controlada, quem prescreveu, a quantidade dada e por quanto tempo este paciente deveria tomar o medicamento.
Isso ajudou muito a todos. Acabou controlando um pouco mais a prescrição indiscriminada de opióides e acabou também dando um pouco mais de consciência para profissionais e pacientes. Sabe-se hoje que a administração de acetaminofen e ibuprofen tem um efeito de controle da dor muito mais eficaz do que a combinação entre opióides e essas duas drogas.
No final das contas eu acho que acabei ficando um pouco cínico quando pacientes chegam dizendo que estão passando por uma dor muito grande. Ainda que eu não goste de assumir este lado negro, eu sei que 99% dos casos de dor podem ser controlados com pulpotomia ou extração. Hoje em dia eu dou estas duas alternativas para o paciente. A gente extrai o dente hoje ou tira o que está causando a dor – no caso o tecido pulpar. Eu posso dizer que é raro os pacientes que optam por tomar remédio. Além do que, eles sabem que vão sair dali sem opióides. Ainda há o momento onde os opióides são prescritos, mas para que isto aconteça o paciente deve passar por um procedimento cirúrgico, geralmente com dente incluso (com remoção de osso) ou a critério do Dentista que está fazendo o procedimento. Ainda assim, o paciente deve assinar um documento dizendo que irá tomar o remédio da maneira prescrita, não irá vender o medicamento nas ruas e que não terá refil do medicamento oferecido. Menos remédio e mais tratamento de qualidade.
Um abraço e sucesso sempre!